Estava lendo um livro, inclusive recomendo muito, do autor Ricardo Dalai, chama-se 33. Um livro inexplicável, de autoficção e baseado em anos de anotações de seus diários. Um livro que leva a gente para muitos lugares e questões. No meio da leitura, eu me deparei com a seguinte frase: Nenhum sentimento é tão autodestrutivo quanto a culpa!” No mesmo momento, eu parei e fui buscar um marca-texto para grifar. Eu pensei quantas vezes eu escuto meus pacientes, meus amigos falando sobre se sentirem culpados? Quantas vezes no dia eu sinto culpa? Culpa por não ter conseguido lavar a louça, por ter saído da dieta, por não ter dado atenção para alguém, por escolhas que fiz ou não fiz. Culpa por me sentir mal comigo mesma, por não seguir um padrão estético, por me sentir disfórica com meu corpo, com o gênero me atribuído, por não atingir as expectativas, principalmente as minhas próprias! Mas elas são realmente minhas? Todas essas culpas que eu sinto diariamente são realmente minhas? Em algum aspecto, são sim, sou eu que as sinto na pele, mas em tantos outros essa culpa me foi imposta compulsoriamente, sem pedido de licença, sem aviso prévio, quando eu vi, ela já era minha. 

Existe alguém que não sente culpa? Essa pessoa é boa pessoa? Ela é livre ou sociopata? Quantas vezes achamos que a culpa deve existir para nos guiar para o caminho “certo”, para sermos corretos? Por que é preciso a culpa? Outras vezes usamos a culpa apenas para nos redimir, isto é, me sinto culpada, logo sou boa pessoa e, portanto, estou perdoada. Que movimentos verdadeiros isso realmente faz? Não será possível abdicar da culpa e ainda seguir o caminho “certo”? E que caminho é esse? Certo para quem? Bom para quem? O que eu ganho quando sinto essa culpa? Muitas vezes um perdão, outras penitências e muitas outras vezes apenas tristeza, angústia, solidão, autolesão. Depois de muitos anos de análise, eu melhorei muito em não sentir culpa pelas expectativas alheias, mas e quando essas expectativas se tornaram minhas, mesmo que eu não concorde racionalmente com várias delas? 

A culpa nem sempre foi um sentimento individual, uma consciência moral individual. Para muitas sociedades, esse sentimento nem existia. A culpa como algo individual e moral passa a existir com o advento e fortalecimento do cristianismo. Com o cristianismo, a culpa ganha um peso maior, o pecado original é herdado, e o arrependimento passa a ser uma via para a salvação. O ser humano passa a nascer culpado e precisa se redimir. A culpa não é apenas de seus atos “impuros e imorais” (qual o parâmetro?). Mas também de seus pensamentos, seus desejos! E, com isso, surge a confissão, o instrumento de disciplina da alma. Como nos apontou Foucault, o cristianismo institucionalizou formas de controle e vigilância sobre os corpos e as almas a partir da noção de culpa.

Mas então só cristãos sentem culpa? Antes fosse, a culpa permeia quase todos nós. Quantas vezes no dia você sente culpa? Às vezes, inclusive, sente culpa por ter um dia ótimo, por ter descansado, por ter feito exatamente o que queria fazer. A culpa tem sido o instrumento mais valioso e eficiente de controle durante séculos. Criamos juízes internos que são cada vez mais ferozes, estão sempre nos sentenciando por ter feito algo, ou não feito, ou não feito bem, por ter pensado, por não ter pensado. Juízes que estão sempre vigilantes e atentos dentro de cada um de nós. 

Com a modernidade, a culpa adquire roupagens novas, porém sua estrutura permanece. Freud foi um dos primeiros a apontar a internalização da culpa gerando conflitos e sofrimento psíquico, neuroses. Segundo o psicanalista, internalizamos normas e valores sociais, criamos um certo tipo de ideal a qual estamos sempre nos medindo e punindo. Logo, o que Freud nomeia como neurose é resultado de uma nova forma de funcionar socialmente. Lélia Gonzalez, influenciada pela psicanálise, propõe o conceito de “neurose cultural brasileira” para descrever a forma como a cultura brasileira é estruturada por tensões e conflitos resultantes da história de opressão racial e de gênero. Em uma perspectiva social e política da culpa, podemos entede-la como um mecanismo pelo qual o indivíduo é culpado por seus “fracassos”, mesmo quando esses são estruturais. A culpa é privatizada. Byung-Chul Han,  fala da “sociedade do desempenho”, onde o sujeito se explora e se culpa sozinho sem precisar necessariamente de uma repressão externa. Os indivíduos se colocam em uma posição de autoexploração, buscando constantemente se superar e melhorar seguindo parâmetros que desconsideram as subjetividades e as desigualdades estruturais. Bem-estar virou mercado e sinônimo de ser produtivo, única forma de ser e de ter valor. A cobrança por desempenho e a pressão para se superar leva à autodestruição, pois estamos sempre nos sentindo culpados por não estarmos à altura de “nossas” expectativas.  Estamos sempre exaustos, culpados, nos comparando e competindo. Competimos até mesmo quem está mais cansado, mais doente. Isso tem levado as pessoas ao isolamento social, pois vamos aos poucos perdendo o contato com os outros, a experiência, o outro passa a ser apenas um instrumento, um produto e parâmetro de comparação. 

Em outras culturas e sociedades, a culpa não é entendida dessa maneira. Em tradições orientais, como o budismo, a culpa é menos central no pensamento. Trabalha-se mais com a questão do apego e entende o erro como parte do caminho. 

Portanto devemos entender que a culpa é uma construção cultural, histórica e subjetiva, em vez de ser apenas um sentimento “natural”. Ela foi moldada por religiões, filosofias e sistemas de poder. Entender isso nos permite questionar as culpas que nos foram ensinadas, diferenciar a responsabilidade pessoal e ética da culpa moral e muitas vezes paralisante. É preciso abrirmos novos espaços, outros modos de lidar com os erros, as falhas e os limites. Afinal “nenhum sentimento é tão autodestrutivo quanto a culpa!”

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